terça-feira, 22 de maio de 2012

Educação x Escola - (Parte -1)



1. Educação e escola: dilemas e desafios

A educação no sentido pleno... Como alcançá-la? É possível planejar a intervenção para, efetivamente, atingir o ideal do homem educado? Qual o papel da escola nos diferentes estágios do processo educativo?
Como processo complexo que acompanha o indivíduo ao longo de toda a vida, a ação educativa está vinculada a inúmeros agentes, múltiplas experiências e incontáveis fontes de aprendizagem, a maioria dos quais de difícil controle. A vida é essencialmente educativa, mas os rumos e os produtos de “sua pedagogia”, particularizados nas histórias de cada um de nós, são absolutamente imprevisíveis. Parte integrante do processo educativo, mas configurando-se como iniciativa diferenciada, a escolarização parece ser a alternativa única e insubstituível de conduzir a formação humana sob modos de intervenção planejados à luz de princípios éticos, culturais, cognitivos, sociais e políticos. Constitui-se uma oportunidade privilegiada, tendo em vista o período de interferência (infância e adolescência), a duração (pelo menos 8 anos de Ensino Fundamental [1]) e a sistemática de trabalho.
Ao longo da história, a escola consagrou-se como instituição especializada em ensinar, sem, contudo resolver a polêmica relação entre a aprendizagem e o processo educativo. Por um lado, é possível vislumbrar a “educação como um subproduto do ensino”, isto é, como uma consequência previsível a partir da assimilação de certo estoque de conhecimento. Por outro, parece bastante defensável a perspectiva do “ensino como subproduto da educação”, uma ótica que coloca a aprendizagem a serviço do alvo maior de formação do homem e, portanto, que ultrapassa a mera aquisição do saber (Gusdorf, 1970).
Na prática, ambos os modelos correm riscos de implementação: iniciativas que, tão centradas nos princípios gerais de formação, acabam por cair no “laisser faire” pedagógico, perpetuando o universo da ignorância, prejudicando a democratização do saber e, consequentemente, comprometendo sua meta educativa original; outros mais comuns no sistema brasileiro, que, no afã de “passar conteúdos”, contentam-se com o acúmulo estéril de informações, desviam-se dos ideais educativos e descuidam-se do homem, perdendo a razão de ser. De qualquer forma, o resultado prejudica a educação e justifica a crise da instituição escolar, repercutindo na conformação de uma sociedade conservadora, injusta, violenta e corrompida [2].
A realidade de nossas escolas hoje deixa ao século XXI o desafio de colocar o esforço pedagógico (o ensino) a serviço das metas educacionais, visando o equilíbrio entre o “ser saber” e o “saber ser”, isto é, entre o sujeito cognoscente e o sujeito social, consciente, equilibrado e responsável. A revisão dos projetos pedagógicos e as reformas curriculares já em andamento em muitos países legitimam-se pela busca de uma nova relação entre homem e conhecimento para democratizar o saber e fazer dele uma bússola capaz de nortear a formação de posturas críticas e as tomadas de decisão.
Do ponto de vista teórico, os educadores não podem desconsiderar a contribuição de importantes pesquisadores, como é o caso de Piaget, para quem a aprendizagem depende de um processo pessoal e ativo de constante abertura para o novo em um contexto de significados (razão pela qual o ensino não se encerra em si mesmo). Além dele, a abordagem interacionista da psicologia russa prestou enorme contribuição às concepções de intervenção escolar pela ênfase no poder das mediações entre o sujeito e o objeto de conhecimento, mecanismo essencial para o descobrimento do mundo e construção de si mesmo.
Do ponto de vista prático, há um consenso praticamente geral de que a escola não mais pode se fechar aos dramas de nossa realidade: a devastação ambiental, a intolerância, o racismo, as drogas, a violência, a incidência de doenças sexualmente transmissíveis, a gravidez precoce...
Em face da amplitude, natureza e complexidade das metas educativas, a escolaridade deixa de ser concebida como mera sucessão de ensinamentos pré-determinados e válidos por si só, cuja somatória garantisse necessária e definitivamente a educação humana. Seja no plano teórico, seja na dimensão prática, a educação do futuro clama pela aproximação entre o ser e o saber pelo rompimento dos muros que separam a escola e o mundo. Nesse sentido, a difícil compreensão entre as esferas pedagógica e educacional [3] no projeto de ensino será tão mais relevante quanto mais ela puder subsidiar a articulação entre ambas em benefício do ajustamento pessoal e da inserção do homem no mundo em que vivemos.


2. Princípios da prática educacional

Ao se considerar a prática educacional na escola, deve-se evitar a “sedutora e cômoda tentação” de aceitar fórmulas genéricas e pré-estabelecidas de intervenção, pois assim como não há escolas “em abstrato”, não se pode projetar a ação educativa a partir de um modelo inflexível e descontextualizado de aluno. Ao longo do século XX, os estudos a respeito do desenvolvimento humano [4] consolidaram-no como objeto de investigação. Longe de se limitar aos processos intrínsecos do desenvolvimento, os aportes da psicologia social, sociolinguística e sociologia permitiram enfocar o ser humano em face do outro, em uma relação dinâmica e significativa com o momento histórico e a cultura. O resultado de tantos estudos reflete-se não só nas mudanças conceituais sobre a infância e adolescência, como também nas importantes contribuições para explicar o relacionamento das crianças e adultos, nos dados acerca dos mecanismos evolutivos e, finalmente, sob a forma de implicações educacionais que fundamentam a revisão de tradicionais práticas escolares.
Avaliando o impacto das recentes pesquisas sobre a compreensão de infância que hoje temos, Kramer (In Leite, Salles e Oliveira, 2000) explica o significado da dimensão sócio histórica da criança: necessariamente inserida em uma cultura (o que dá significado a seus atos e pensamentos), ela também interfere no âmbito social, modificando-o.
A constatação da criança enquanto ser ativo, capaz de conceber ideias, submetê-las ao confronto com a realidade para reconsiderá-las posteriormente, enfrentar produtivamente os embates interpessoais e contradições de nosso mundo para, a partir deles, criar e recriar, dessacralizar objetos e instituições, mudar a ordem das coisas e assumir a “gestão cognitiva” nos complexos processos de assimilação e acomodação redimensiona definitivamente a ação educativa. Em oposição à tradicional prática pedagógica constituída pela submissão, calcada no “adultocentrismo” e “didatização” de conteúdos [5], somos desafiados a considerar o ensino (e consequentemente, o processo educativo realizado na escola) como uma construção pessoal, levada a cabo pelas várias descobertas e atribuições de significado em um processo dinâmico de construção e desconstrução.
Nessa perspectiva, é possível responder à questão inicialmente formulada, admitindo, sim, a intervenção educativa no âmbito escolar. Mais do que isso, é preciso defendê-la como objetivo essencial da escola, sem o qual perde-se o sentido da prática pedagógica. Longe de se configurar como processo rígido, projetado em uma única direção, o esforço educativo orienta-se para o ajustamento do indivíduo em possibilidades simultâneas e complementares de desenvolvimento, personalização, socialização, humanização e libertação [6] a partir dos seguintes requisitos:

a) O Eu: consideração do estágio de desenvolvimento do aluno como meio de obter diretrizes para a ação educativa, não pelo delineamento de quadros descritivos de possibilidades e limites [7], mas pela dimensão prospectiva do sujeito, isto é, aquilo que ele pode vir a ser.
b) O mundo: consideração da realidade histórica e social do aluno, essencial no “palco das negociações pedagógicas” para situar necessidades, significados, objetivos, limites, desafios, meios e razões para a prática educacional.
c) A escola: consideração do impacto da vida escolar sobre o aluno e seus significados ao longo da vida estudantil, aspectos esses capazes de redimensionar a vida do sujeito dentro e fora da escola [8].
d) A ação educativa: clareza das metas educativas priorizadas pelo projeto pedagógico da escola a partir dos itens anteriores, em perspectivas de intervenção flexíveis e nunca definitivas.


Pensada sob o enfoque da dinâmica de implementação, a prática educativa faz sentido nas esferas macro e micro. A primeira diz respeito ao planejamento previsto a longo prazo com o propósito de nortear e imprimir coerência ao projeto escolar. A segunda refere-se ao exaustivo acompanhamento da rotina dentro e fora da sala de aula (os alunos individual e coletivamente, os fatos e ocorrências, o dito e o não dito, o sentido, o conhecido e o percebido, as dificuldades e conquistas, os dilemas e as alternativas de encaminhamento) em um constante trabalho que avalia e realimenta o plano elaborado. No conjunto, trata-se de uma reorientação do trabalho escolar já que os educadores são constantemente convidados a conhecer para estabelecer prioridades, projetar para, na prática, concretizar o seu trabalho, rever concepções para recriar novos meios de intervenção em diferentes possibilidades.