1. Educação e escola: dilemas e desafios
A educação no sentido pleno... Como
alcançá-la? É possível planejar a intervenção para, efetivamente, atingir o
ideal do homem educado? Qual o papel da escola nos diferentes estágios do
processo educativo?
Como processo complexo que
acompanha o indivíduo ao longo de toda a vida, a ação educativa está vinculada
a inúmeros agentes, múltiplas experiências e incontáveis fontes de
aprendizagem, a maioria dos quais de difícil controle. A vida é essencialmente
educativa, mas os rumos e os produtos de “sua pedagogia”, particularizados nas
histórias de cada um de nós, são absolutamente imprevisíveis. Parte integrante
do processo educativo, mas configurando-se como iniciativa diferenciada, a
escolarização parece ser a alternativa única e insubstituível de conduzir a
formação humana sob modos de intervenção planejados à luz de princípios éticos,
culturais, cognitivos, sociais e políticos. Constitui-se uma oportunidade
privilegiada, tendo em vista o período de interferência (infância e
adolescência), a duração (pelo menos 8 anos de Ensino Fundamental [1]) e a
sistemática de trabalho.
Ao longo da história, a escola
consagrou-se como instituição especializada em ensinar, sem, contudo resolver a
polêmica relação entre a aprendizagem e o processo educativo. Por um lado, é
possível vislumbrar a “educação como um subproduto do ensino”, isto é, como uma
consequência previsível a partir da assimilação de certo estoque de
conhecimento. Por outro, parece bastante defensável a perspectiva do “ensino
como subproduto da educação”, uma ótica que coloca a aprendizagem a serviço do
alvo maior de formação do homem e, portanto, que ultrapassa a mera aquisição do
saber (Gusdorf, 1970).
Na prática, ambos os modelos
correm riscos de implementação: iniciativas que, tão centradas nos princípios
gerais de formação, acabam por cair no “laisser faire” pedagógico, perpetuando
o universo da ignorância, prejudicando a democratização do saber e,
consequentemente, comprometendo sua meta educativa original; outros mais comuns
no sistema brasileiro, que, no afã de “passar conteúdos”, contentam-se com o
acúmulo estéril de informações, desviam-se dos ideais educativos e descuidam-se
do homem, perdendo a razão de ser. De qualquer forma, o resultado prejudica a
educação e justifica a crise da instituição escolar, repercutindo na
conformação de uma sociedade conservadora, injusta, violenta e corrompida [2].
A realidade de nossas escolas
hoje deixa ao século XXI o desafio de colocar o esforço pedagógico (o ensino) a
serviço das metas educacionais, visando o equilíbrio entre o “ser saber” e o
“saber ser”, isto é, entre o sujeito cognoscente e o sujeito social,
consciente, equilibrado e responsável. A revisão dos projetos pedagógicos e as
reformas curriculares já em andamento em muitos países legitimam-se pela busca
de uma nova relação entre homem e conhecimento para democratizar o saber e
fazer dele uma bússola capaz de nortear a formação de posturas críticas e as
tomadas de decisão.
Do ponto de vista teórico, os
educadores não podem desconsiderar a contribuição de importantes pesquisadores,
como é o caso de Piaget, para quem a aprendizagem depende de um processo
pessoal e ativo de constante abertura para o novo em um contexto de
significados (razão pela qual o ensino não se encerra em si mesmo). Além dele,
a abordagem interacionista da psicologia russa prestou enorme contribuição às
concepções de intervenção escolar pela ênfase no poder das mediações entre o
sujeito e o objeto de conhecimento, mecanismo essencial para o descobrimento do
mundo e construção de si mesmo.
Do ponto de vista prático, há um
consenso praticamente geral de que a escola não mais pode se fechar aos dramas
de nossa realidade: a devastação ambiental, a intolerância, o racismo, as
drogas, a violência, a incidência de doenças sexualmente transmissíveis, a
gravidez precoce...
Em face da amplitude, natureza e
complexidade das metas educativas, a escolaridade deixa de ser concebida como
mera sucessão de ensinamentos pré-determinados e válidos por si só, cuja
somatória garantisse necessária e definitivamente a educação humana. Seja no
plano teórico, seja na dimensão prática, a educação do futuro clama pela
aproximação entre o ser e o saber pelo rompimento dos muros que separam a
escola e o mundo. Nesse sentido, a difícil compreensão entre as esferas
pedagógica e educacional [3] no projeto de ensino será tão mais relevante
quanto mais ela puder subsidiar a articulação entre ambas em benefício do
ajustamento pessoal e da inserção do homem no mundo em que vivemos.
2. Princípios da prática educacional
Ao se considerar a prática
educacional na escola, deve-se evitar a “sedutora e cômoda tentação” de aceitar
fórmulas genéricas e pré-estabelecidas de intervenção, pois assim como não há
escolas “em abstrato”, não se pode projetar a ação educativa a partir de um
modelo inflexível e descontextualizado de aluno. Ao longo do século XX, os
estudos a respeito do desenvolvimento humano [4] consolidaram-no como objeto de
investigação. Longe de se limitar aos processos intrínsecos do desenvolvimento,
os aportes da psicologia social, sociolinguística e sociologia permitiram
enfocar o ser humano em face do outro, em uma relação dinâmica e significativa
com o momento histórico e a cultura. O resultado de tantos estudos reflete-se
não só nas mudanças conceituais sobre a infância e adolescência, como também
nas importantes contribuições para explicar o relacionamento das crianças e
adultos, nos dados acerca dos mecanismos evolutivos e, finalmente, sob a forma
de implicações educacionais que fundamentam a revisão de tradicionais práticas
escolares.
Avaliando o impacto das recentes
pesquisas sobre a compreensão de infância que hoje temos, Kramer (In Leite,
Salles e Oliveira, 2000) explica o significado da dimensão sócio histórica da
criança: necessariamente inserida em uma cultura (o que dá significado a seus
atos e pensamentos), ela também interfere no âmbito social, modificando-o.
A constatação da criança enquanto
ser ativo, capaz de conceber ideias, submetê-las ao confronto com a realidade
para reconsiderá-las posteriormente, enfrentar produtivamente os embates
interpessoais e contradições de nosso mundo para, a partir deles, criar e recriar,
dessacralizar objetos e instituições, mudar a ordem das coisas e assumir a
“gestão cognitiva” nos complexos processos de assimilação e acomodação
redimensiona definitivamente a ação educativa. Em oposição à tradicional
prática pedagógica constituída pela submissão, calcada no “adultocentrismo” e
“didatização” de conteúdos [5], somos desafiados a considerar o ensino (e
consequentemente, o processo educativo realizado na escola) como uma construção
pessoal, levada a cabo pelas várias descobertas e atribuições de significado em
um processo dinâmico de construção e desconstrução.
Nessa perspectiva, é possível
responder à questão inicialmente formulada, admitindo, sim, a intervenção
educativa no âmbito escolar. Mais do que isso, é preciso defendê-la como objetivo
essencial da escola, sem o qual perde-se o sentido da prática pedagógica. Longe
de se configurar como processo rígido, projetado em uma única direção, o
esforço educativo orienta-se para o ajustamento do indivíduo em possibilidades
simultâneas e complementares de desenvolvimento, personalização, socialização,
humanização e libertação [6] a partir dos seguintes requisitos:
a) O Eu: consideração do estágio
de desenvolvimento do aluno como meio de obter diretrizes para a ação
educativa, não pelo delineamento de quadros descritivos de possibilidades e
limites [7], mas pela dimensão prospectiva do sujeito, isto é, aquilo que ele
pode vir a ser.
b) O mundo: consideração da
realidade histórica e social do aluno, essencial no “palco das negociações
pedagógicas” para situar necessidades, significados, objetivos, limites,
desafios, meios e razões para a prática educacional.
c) A escola: consideração do
impacto da vida escolar sobre o aluno e seus significados ao longo da vida
estudantil, aspectos esses capazes de redimensionar a vida do sujeito dentro e
fora da escola [8].
d) A ação educativa: clareza das
metas educativas priorizadas pelo projeto pedagógico da escola a partir dos
itens anteriores, em perspectivas de intervenção flexíveis e nunca definitivas.
Pensada sob o enfoque da dinâmica
de implementação, a prática educativa faz sentido nas esferas macro e micro. A
primeira diz respeito ao planejamento previsto a longo prazo com o propósito de
nortear e imprimir coerência ao projeto escolar. A segunda refere-se ao
exaustivo acompanhamento da rotina dentro e fora da sala de aula (os alunos
individual e coletivamente, os fatos e ocorrências, o dito e o não dito, o
sentido, o conhecido e o percebido, as dificuldades e conquistas, os dilemas e
as alternativas de encaminhamento) em um constante trabalho que avalia e realimenta
o plano elaborado. No conjunto, trata-se de uma reorientação do trabalho
escolar já que os educadores são constantemente convidados a conhecer para
estabelecer prioridades, projetar para, na prática, concretizar o seu trabalho,
rever concepções para recriar novos meios de intervenção em diferentes
possibilidades.